quinta-feira, 19 de agosto de 2010


O discurso na poesia e o discurso no romance
Mesalas Santos
Uma das importantes colaborações bakhtinianas para a interpretação de um texto refere-se ao fato de que o sentido se constitui não só pelos seus aspectos propriamente linguís­ticos, mas também e principalmente, pela inextricável relação com o contexto extralinguístico, ou seja, pela relação que existe entre o texto e os fatores sociais, históricos, culturais e ideológicos de sua produção. Nenhum discurso é individual, segundo o autor, já que se constrói por meio das relações entre seres sociais e todos os discursos sociais mantêm uma plena e permanente interação.
Essa relação pode verificar-se em enunciados de diferentes falantes, através do chamado “diálogo composicional ou dramático”, ou principalmente no enunciado de um só falante, configurando o chamado dialogismo interno. Isso se compreende melhor a partir da noção da língua como um elemento vivo, mutável, em constante evolução. Para Bakhtin a língua só se realiza através do processo de enunciação, que compreende não só a matéria linguística, mas o contexto social em que o enunciado se manifesta. Disto decorre que o discurso é um fenômeno social em todas as esferas de sua existência, e traz para dentro de sua estrutura sintática e semântica, outras vozes, outros discursos, igualmente situados social e ideologicamente e que, além disso, ao serem citados, não perdem, de todo, sua forma e conteúdo.
O dialogismo bakhtiniano adquire novas e mais complexas significações quando aplicado à literatura, notadamente na questão do discurso no romance. Discorrendo sobre o assunto, Bakhtin declara que “o romance, tomado como conjunto, caracteriza-se por ser um fenômeno pluriestilístico, porque, nele, diversas e heterogêneas unidades estilísticas se encontram, não de forma estanque, mas harmoniosamente, submetidas ao estilo maior do conjunto”. O romance é também plurivocal, porque, nele, também se apresentam diferentes línguas e vozes sociais (“dialetos sociais, maneirismos de grupo, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala de gerações, das idades, etc.”), que possibilitam ao romance organizar e difundir seus temas, abrindo-se à complexidade geralmente conflituosa das sociedades modernas, em que este gênero literário costuma inspirar-se. São, portanto, os diversos discursos, do autor, do narrador, das personagens, etc., que introduzem o plurilinguísmo no romance.
No discurso de cada um deles ressoam ou são pressupostas outras vozes sociais. Segundo Bakhtin, a dialogização entre esses discursos e línguas, por meio do qual o tema se movimenta, é o que singulariza o estilo do romance. A ideia de que um enunciado está sempre voltado para outro, repete-se e ganha maior grau de complexidade quando Bakhtin se refere aos fenômenos específicos do discurso com suas variedades de formas e graus de orientação dialógica. Na visão bakhtiniana, o discurso está sempre voltado para seu objeto (tema) que já traz no bojo ideias de outros falantes. Em consequência, o discurso é sempre levado dialogicamente ao discurso do outro, repleto de entonações, conotações e juízos valorativos. Assimila o outro discurso, refuta-o, funde-se com ele, e, assim, acaba por constituir-se enquanto discurso. Portanto, o discurso forma-se a partir das relações dialógicas com outros discursos, que influenciam o seu aspecto estilístico.
A consideração bakhtiniana sobre o discurso é entendê-lo como “diálogo vivo”; por isso, está sempre voltado para a réplica, para a resposta que ainda não foi dita, mas que é provocada e, consequentemente, passa a ser esperada. Todo falante espera ser compreendido, espera a resposta, a objeção ou a consentimento; por isso orienta seu discurso para o universo do ouvinte; com isso acrescenta novos elementos ao seu discurso. As relações dialógicas do discurso, para com o objeto e para com o discurso alheio, nesse caso a resposta do ouvinte, podem unificar-se de modo a se tornarem quase indistinguíveis a uma análise estilística.
A dialogicidade interna do discurso, a relação com o discurso de outrem dentro de um mesmo enunciado, é um dos aspectos fundamentais do estilo da prosa romanesca. Para Bakhtin, o prosador pode, através das diversas vozes discursivas que o objeto convoca, fazer ressoar a sua própria voz e construir seu estilo. Sem perder sua personalidade de criador, pode acolher as falas da língua literária e extraliterária mantendo-lhe os acentos sócio-ideológicos, ou seja, utiliza os discursos já plenos de intenções alheias para fazê-los interagir ideologicamente segundo a sua intenção artística de romancista. Desse modo, ocorre o fenômeno da pluridiscursividade, que se organiza num “sistema harmonioso”, a exigir, segundo Bakhtin, um método de análise inteiramente novo: “a única estilística adequada para essa particularidade é a estilística sociológica”(106).
Esta estilística verifica as relações sociais frequentemente conflituosas, mesmo que de modo dissimulado, no modo pelo qual se tecem as relações discursivas no romance. Dessa forma, entendo que o plurilinguísmo é o elemento básico, essencial para Bakhtin analisar “a pessoa que fala no romance”. As linguagens sociais, dos gêneros, das profissões, etc., penetram no romance materializando-se nas pessoas que falam. Com essa compreensão, Bakhtin determina a principal característica do gênero romanesco “o homem que fala e sua palavra”. Isto é, o sujeito falante não é um ser abstrato, surgido do nada, é um homem que ocupa um lugar no mundo, relaciona-se com tudo e todos que o rodeiam, sendo, portanto, detentor de uma consciência sócio-ideológica. No romance, seu discurso, acompanhado da particularidade ideológica que lhe é inerente, é objeto de elaboração artística. Não é transmitido ou reproduzido, mas representado. Portanto, essa faculdade de apresentar a pessoa que fala como um homem “essencialmente social” é o que confere originalidade  ao romance.

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP. 1998.

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