As irmandades religiosas no Ceará
O Maracatu, manifestação da cultura popular
brasileira, surgiu no Brasil, no final do século XVII, como forma de
preservação da cultura ancestral dos negros. Em princípio, era um auto, a
congada, com aparência de brincadeira para coroar a realeza negra, ou seja, uma
simbólica coroação dos reis do Congo. O auto dos reis do Congo deu origem ao
Maracatu como também a diversas outras manifestações populares, como, por
exemplo, os caboclinhos, os reisados, e os pastoris. Hoje o Maracatu no Brasil
é uma manifestação popular que se apresenta durante o carnaval e outras datas
festivas. Nesta matéria, a socióloga Maria do Socorro Barbosa da Silva trata
história do Maracatu em Fortaleza.
Em
poucos lugares no Brasil, as irmandades religiosas estiveram tão presentes, no
que diz respeito aos seus atos compromissais, como no Ceará. Apesar de terem
tido um papel histórico muito importante no Estado, elas foram, mais tarde,
esquecidas e pouco estudadas. Existiam vários tipos de irmandades: as de
brancos, as de brancos e pretos, as de pardos e algumas, raras, compostas
somente de pretos, isto é, de escravos ou de escravos alforriados. Essas
irmandades desfilavam em ocasião de atos mais solenes com indumentárias
imitando a corte portuguesa. Elas funcionavam também como entidades de classes,
pois eram bem distintas. Havia as irmandades nobres, como a do Carmo, as de
pretos, como a do Rosário, e as de mulatos, como a de São Francisco. Todas
serviam de instrumento de ação social (CAMPOS, 1980, p. 5-6).
Através
das irmandades, os escravos tinham a possibilidade de participação, mesmo que
reduzida, na vida social e religiosa do lugar. Elas mantinham uma espécie de
caixa, que proporcionava ajuda aos escravos, como, por exemplo, auxílio
funerário e chegavam até mesmo a pagar pensão às viúvas de escravos. Durante as
festas realizadas pelas irmandades, os negros tinham um papel muito importante,
pois os senhores de engenho permitiam que eles criassem seus próprios reis e se
apresentassem em alguns dias do ano. As festas de danças ocorriam à tarde,
depois das comemorações religiosas matinais (PIRES, 2004, p. 91).
No
Ceará, havia a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário em Aracati, em Icó e em
Fortaleza. Durante as festas das irmandades, os escravos tinham certa
liberdade, pois eram as figuras principais do cortejo. Eles se apresentavam
como o Rei, a Rainha, o mestre de cerimônia e os mestres de campo. Havia também
nas Irmandades as ´açafatas´, que eram fidalgos que serviam na Corte do ritual.
Essas pessoas carregavam um cestinho de vime chamado de ‘açafato´, em que se
traziam rendas e brocados.
Em
Fortaleza, no final do século XIX, os negros já festejavam a coroação de sua
rainha em um cortejo que saía do Morro do Moinho, por trás da estação João
Felipe, no Centro de Fortaleza, e seguia rumo à Igreja de Nossa Senhora do
Rosário (LIMA, 2003, p. 4). O escritor cearense Gustavo Barroso (1962, p. 374)
ressalta que os últimos Reis do Congo que houve em Fortaleza, minha terra
natal, foram o negro Firmino, ex-escravo de meu pai, e a negra Aninha Gata.
Esta ainda conheci aí por volta de 1897 ou 1898, com pequena quitanda na antiga
travessa das Flores, entre as ruas Major Facundo e a da Boa vista, hoje
Floriano Peixoto. A tradição do Maracatu surgiu, sem dúvida, dessas irmandades,
que tiveram um papel muito relevante na sociedade colonial, entre os séculos
XVII e XIX. Hoje, o Maracatu é uma procissão solene, sagrada e profana, que
restou do antigo Auto dos Congos realizado pelas irmandades católicas, que
simbolicamente coroavam a nobreza africana exilada (PORTO, 2005).
A folia do povo
O
carnaval de Rua em Fortaleza iniciou-se no final do Século XIX, mas foi
proibido por um período, em 1905, pelo intendente Guilherme Rocha. Nos desfiles
da época eram comuns pessoas fantasiadas chamadas de ´papangus´ e ´dominós´.
Havia também os ´caboclos´, remanescentes dos indígenas de Porangaba (NIREZ,
1993, p. 3). De acordo com Nirez (1993), o carnaval de Fortaleza era mais ou
menos animado, conforme a situação econômica e social da época. Em tempo de
revolta ou guerra, era desanimado e em tempo de paz e harmonia era muito
animado. Nas décadas de 1910 e 1920, predominava o carnaval de clubes. Na
década de 1930, o carnaval de rua começou a se tornar mais popular, quando
blocos foram formados por músicos, comerciários e trabalhadores, denominados
´brincantes´, com a orquestra na retaguarda. Na frente havia sempre um baliza,
que fazia acrobacias com bastão à mão. Esses blocos tinham compositores
próprios que geralmente faziam marchas especiais para o Carnaval. Mais tarde
surgiram os blocos que dançavam ao som de samba. O primeiro desses blocos foi o
´Prova de Fogo´, seguido da ´Escola de Samba Lauro Maia´, que se transformaria,
mais tarde, na ´Escola de Samba Luiz Assunção´.
O
desfile, chamado de ´corso´, nas décadas de 1930, 1940 e 1950, teve várias
formas. Os blocos se reuniam na Praça do Ferreira e desciam para a Avenida
Duque de Caxias, fazendo o retorno ao ponto inicial. Mais tarde, passaram a
fazer um círculo, voltando por outras ruas. Por fim, a concentração passou a
ser no Passeio Público, seguindo o desfile pela Rua Major Facundo até a Praça
do Ferreira, onde atravessavam em diagonal, retomando pela Floriano Peixoto,
indo até a Avenida Duque de Caxias, voltando pelas Ruas Senador Pompeu e João
Moreira e desfaziam-se quando chegavam novamente ao Passeio Público. Houve anos
em que o desfile foi feito pelas grandes avenidas, como a Tristão Gonçalves, a
Duque de Caxias e a Dom Manuel (NIREZ, 1993).
Os
blocos de Maracatus em Fortaleza surgiram em meados da década de 1930 e eram
diferentes dos Maracatus de Recife. Enquanto os pernambucanos vêm de uma
tradição secular, os de Fortaleza era somente uma brincadeira de carnaval. Como
nos Maracatus originais do Recife, os Maracatus de Fortaleza tinham várias
vestimentas dentro de um mesmo bloco, com a rainha, o rei, o índio, as baianas,
o baliza, e outros. Vários blocos carnavalescos fizeram parte do carnaval de
rua de Fortaleza no início do século XX e entre eles encontravam-se os blocos de
Maracatus, como o Az de Ouro, o Az de Espadas, o Estrela Brilhante e o Rei de
Paus (NIREZ, 1993). Da década de 1930 ao final do século XX, surgiram muitos
blocos de Maracatu em Fortaleza. Além dos supracitados surgiram mais tarde
vários outros blocos, como, por exemplo, o Rancho Alegre, o Rancho de Iracema,
o Nação Uirapuru, o Leão Coroado, o Nação Africana, o Vozes d´África, o Nação
Baobab e o Rei dos Palmares. (PIRES, 2004).
A
cadência própria e original do ritmo do Maracatu cearense foi adquirida ao longo
do tempo. De acordo com Calé Alencar (2000), presidente do Maracatu Nação
Fortaleza, O Maracatu do Ceará é a mais tradicional manifestação cultural de
origem afro presente na cultura popular cearense e em especial no carnaval de
rua de Fortaleza, onde se impôs como força representativa apresentando seu
cortejo com imponência e beleza. Em suas apresentações, os batuqueiros e os
tiradores de loas, responsáveis pela parte musical do cortejo, entoam cânticos
homenageando orixás e figuras expressivas da cultura e da história
afro-brasileira. Os Maracatus Az de Ouro, Rei de Paus, Vozes d´África, Nação
Baobab e Rei de Espada desfilam em Fortaleza regularmente com seu séquito,
trazendo a representação do cortejo real africano em homenagem à Rainha N´Ginga
N´Bandi e reproduzindo as coroações dos Reis do Congo organizadas no século XIX
pelas Irmandades religiosas (ALENCAR 2000). José Augusto Lopes (2004, p. 5)
afirma que ´[...] os cearenses nunca figuraram entre os mais
entusiasmados brincantes do Brasil. Há quem atribua essa evidência à existência
de poucos afro-brasileiros no Ceará´. Entretanto, ´apesar de seus limites o
carnaval de rua fortalezense teve suas peculiaridades. Uma delas eram os
exuberantes carros alegóricos das prostitutas, todas elas residentes nas
inúmeras ´pensões alegres´ então existentes no Centro da cidade´. Além dos
carros alegóricos os blocos de Maracatu sempre enriqueceram e animaram o
carnaval de rua de Fortaleza.
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