Nossa Idade Média - Michel Onfray e as excomunhões de Olinda
Paulo Jonas de Lima
Piva
Esses bispos e teólogos do
alto clero da Igreja Católica são mesmo grotescos e bizarros, em particular os
do Brasil. Aquele medieval caso das excomunhões das pessoas envolvidas no
aborto daquela menina infeliz estuprada pelo padastro no nordeste brasileiro
entrou até na agenda de discussões do filósofo francês Michel Onfray,
autor do monumental Tratado de ateologia, lançado recentemente pela
editora Martins Fontes. O texto abaixo (uma entrevista) é interessante,
inclusive para desfazer a baboseira de que Michel Onfray seria um
"fundamentalista ateu" (sic!!).
A polêmica sobre a decisão do arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, que excomunhou os médicos que realizaram o aborto no episódio da menina estuprada pelo pai ganhou repercussão internacional. Para o filósofo francês Michel Onfray, decisão é coerente com pensamento oficial da Igreja Católica de hoje. "A ideologia da Igreja é reacionária, conservadora e insuportável. A Igreja apresenta indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista", critica Onfray.
por Marta Fantini*
O filósofo francês Michel Onfray, iniciador da Universidade Popular de Caen , autor de 51 livros, traduzidos em mais de 20 línguas, e de uma coleção de 12 CDs, aposta na Filosofia como meio de vencer o lado irrracional do ser humano: "Apesar do sofrimento da existência humana, que sempre existiu e existirá, é preciso viver em pé, com dignidade e não ajoelhado. O filósofo tem a obrigação de construir um movimento universal de elevação da condição humana".
Por ocasião da sua passagem
por Bordeaux, para o lançamento de seu último livro, "Contra-história da
Filosofia: as radicalidades existenciais" , Michel Onfray nos concedeu uma
entrevista sobre o lastimável episódio do aborto terapêutico, ocorrido em
Recife.
Marta Fantini: O
sofrimento de uma família, que deveria permanecer na esfera privada, acabou se
tornando um evento midiático de repercursão internacional, devido a uma punição
da Igreja Católica que parece sair das "entranhas da Idade Média": a
excomunhão.
Michel Onfray: A decisão
parece da Idade Média, mas ela está inscrita no corpus do pensamento oficial da
Igreja de hoje. Não se pode ignorá-la: a Igreja diz claramente que o aborto é
proibido, que é um pecado e o clero aplica o que a Igreja professa. Na minha
opinião, não há incoêrencia entre a excomunhão, que é insignificante, e a
ideologia da Igreja, que é reacionária, conservadora e insuportável.
A Igreja apresenta
indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela excomungou todos
os comunistas e nunca excomungou um único nazista. Hitler nunca foi excomungado
assim como os ideólogos do nazismo e os membros do partido. A Igreja somente
demonstra o que ela foi e é, colocando-se sempre ao lado dos fortes, dos
poderosos, da colaboração. Ela não resiste. Ela não se preocupa com os pobres.
Ela não demonstrou misericórdia a este ser frágil que foi violentado pelo
padrasto. Ela não apoiou esta menina. Ao contrário, ela ainda a afligiu,
considerando-a até culpada e responsável.
Eu li na imprensa francesa
que, para o bispo de Recife, o estrupo é menos grave que o aborto. Quando
alguém lhe perguntou porque o padastro não foi excomungado, ele respondeu que
"dar a morte é mais grave". Dar a morte a um feto é mais grave que o
estupro e a pedofilia? O feto é um ser potencialmente vivo que está programado
para se tornar uma pessoa, mas não é uma pessoa. Antes que se torne um ser
humano, pode-se praticar o aborto, e sobretudo, nestas condições, parece-me um
ato evidente.
MF : Como explicar esta
insistência em preservar a vida se, por outro lado, a Igreja sempre legitimou a
violência dos Estados?
MO: Ela pretende defender
a vida, mas ela não a defende. Onde está a dignidade nesta aventura? O que se
pode chamar de vida? Onde ela se encontra? Numa manifestação biológica? Neste
caso a simples ejaculação, na hora da masturbação, é um genocídio! É preciso
parar com isso. O espermatozóide é matéria viva. Neste caso, ela deveria
excomungar todos os homens que se masturbam, pois os espermatozóides vão
terminar no fundo de um vaso sanitário e não na destinação prevista que é a
fecundação do óvulo! É um delírio total esta posição da Igreja que se diz
defensora da vida e, ao mesmo tempo, justifica a pena de morte no
"Catecismo da Igreja Católica".
Eu até ganhei uma caixa de
champanhe numa aposta com alguém que não acreditava que isso fosse possível! No
"Catecismo da Igreja Católica" está escrito, explicitamente, que, em
alguns casos extremos, pode-se aplicar a pena de morte. Sinto muito, é uma
questão de princípio: não se defende a pena de morte quando se é cristão. E
ainda querem que acreditemos que defendem a vida quando se defende, ao mesmo
tempo, a pena de morte? A Igreja defendeu a vida ao dar a bênção às bombas
atômicas que explodiram em Hiroshima e Nagasaki? Ela defendeu a vida ao dar a
bênção às armas que serviram para assassinar os republicanos espanhóis durante
a Guerra da Espanha?. A Igreja pretende defender a vida, mas o que ela defende
é o poder em vigor. Na verdade, o que fascina a Igreja é a morte. É a morte que
lhe interessa.
MF: O que a imprensa
francesa não citou, nos inúmeros artigos sobre este trágico evento, é que a
Igreja, no Brasil, enfrenta uma queda de braço com o Estado. A República
democrática brasileira se moderniza: a pesquisa sobre as células troncos foi
liberada, a legalização do aborto está em discussão, a população se beneficia
da distribuição gratuita de preservativos e pílulas do dia seguinte. Como
explicar que esta Igreja, que não consegue acompanhar a evolução dos costumes
morais e o progresso da Ciência, está se tornando cada vez mais
fundamentalista?
MO : A questão não é o que
ela está se tornando, o problema é que ela sempre foi e é fundamentalista.
Acredito que, ultimamente, a Igreja está tentando colocar as coisas no seu eixo
original. Com o recente retorno do islamismo, no mercado intelectual,
ideológico e espiritual, ela diz que nem tudo está perdido para as religiões.
Ela constata que, finalmente, ainda existem pessoas que acreditam em Deus e que
em nome de Alá são capazes de morrer por ele, de lutar por ele, de viver por
ele, que se comportam, na existência de uma vida cotidiana, de acordo com os
preceitos que teriam sido ditados por ele. Penso que a Igreja está numa lógica
de reconquista e que é o momento ideal de avançar seus peões. O papa Bento XVI,
começou a avançá-los, por exemplo, com a reabilitação dos bispos negacionistas.
Quando percebeu que esta estratégia estava provocando muito debate na imprensa
internacional, ele recuou.
Acredito que há uma
espécie de desejo de reconquistar a fé em escala planetária. Eu li no Le
Figaro, o único jornal disponível no hotel, uma página inteira consagrada ao
Papa e à carta que ele enviou aos bispos. Ele cita que o desejo de São Pedro
era fazer proselitismo. O cristianismo e o número 1 dos cristãos, Bento XVI,
concluem: se o Islã faz proselitismo e obtem resultados positivos, porque a
Igreja Católica também não o faria? É uma maneira de reconquistar o terreno
perdido, em todos os países. É o que aconteceu na Itália. Recentemente, houve
uma eleição ultra politizada, uma espécie de referendum sobre a questão do
aborto, do reembolso deste tipo de intervenção, de células troncos, etc. A
Igreja pediu a abstenção. Uma boa tática que se revelaria na hora da contagem
dos votos, uma prova que a abstenção seria a Igreja, com um número considerável
de vozes. A era de João Paulo II, da mediatização do tipo «rock star» e das
viagens planetárias, terminou. O eucumenismo, da época em que se dançava com os
aborígines, na Austrália, como pretexto de comunhão com o sagrado, tudo isso
acabou. O único objetivo da Igreja atual é o retorno à antiga boa fé católica
apostólica romana. Neste período de niilismo generalizado, ela se impõe uma
posição mais rígida. A suspensão da excomunhão dos bispos negacionistas, o que
se passou na Itália e no Brasil, são, para mim, sinais convergentes.
MF : Com a crise, o
fundamentalismo pode piorar no seio das três grandes religiões monoteístas? A
micro resistência, à qual você sempre faz alusão, não seria uma esperança como
foi a Teoria da Libertação ou os Movimentos Pastorais na América Latina?
MO: As microresistências
são a única solução possível. Eu penso que há cristãos que não estão de acordo
com esta opção de direita à extrema direita da Igreja. Na “Golias”, uma
excelente revista, publicada por católicos franceses de esquerda, pode-se
encontrar artigos extremamente inteligentes. No último número, por exemplo,
publicaram análises interessantes sobre o caso do bispos negacionistas. Há
sempre uma categoria de católicos de esquerda com a qual se pode contar. Há
sempre alguém que não aceita o inaceitável, que não se submete. Há esta
esperança e há também a esperança no avanço do combate ateu. Nos Estados Unidos
e na Inglaterra as obras sobre o ateísmo fazem muito sucesso. «O Tratado da Ateologia»
foi best seller na Austrália, Espanha e Itália, quer dizer, se fizermos avançar
o combate ateu, obteremos soluções. Evidentemente, sem repetir o erro do «ser
ateu» do século XIX: anticlerical , mas fabricante de uma espécie de igreja
atéia, de clero ateu. Seria o pior que poderia acontecer, ou seja, querer
destruir, utilizando os mesmos métodos. É preciso avançar argumentos, debater
questões como as dos tratamentos paliativos, da eutanásia… A França está com
muito atraso em relação a estes assuntos. Porque a eutanásia não avança, mas
sim os tratamentos paliativos? Porque o lobby cristão é potente para interferir
nas decisões dos deputados e dos senadores e impedir que a lei sobre a
eutanásia seja votada.
MF: Seus livros estão
traduzidos em mais de vinte línguas e a venda de seus CDs atingiram 50 mil
exemplares. Parece-me um número impressionante, em se tratando de conteúdo
filosófico. Este sucesso seria a prova que a Filosofia preenche um vazio
deixado pela religião que já não satisfaz a busca espiritual do ser humano do
século XXI ?
MO: Minha proposta é sair
da era religiosa e teológica para entrar na era filosófica. É preciso parar de
projetar a vida em universos inexistentes para construir a sua existência.
Devemos nos contentar com este mundo real, examinar o que podemos fazer de
nossas existências nesta vida que é pós moderna, pós industrial, pós fascista,
pós comunista e pós cristã, seguramente. O que podemos fazer num período de
niilismo? Somente a Filosofia poderá trazer as respostas. Gostaria que os
livros de catecismo fossem substituídos, nas escolas, por ateliers de
Filosofia, gostaria que todos nós refletíssemos juntos para, pelo menos,
provocar a vontade de adquirir conhecimento. Sobretudo para aqueles que ficaram
às margens, pois um dia, alguém disse que a Filosofia não era para eles; que
ela foi feita para a elite, para a aristocracia e quem não fizesse parte dela,
não teria direito a ela. O desejo da filosofia é o desejo da sabedoria, da
necessidade de ética, de reflexão e de moral. Almejo uma Filosofia que
esclareça, que simplifique sem se empobrecer. Quando me deparo, nos meus cursos
da Universidade Popular de Caen, com anfiteatros lotados, com mais de mil
pessoas, com transmissão em vídeo no saguão, para aqueles que não conseguiram
entrar, eu constato que é possível, que a Filosofia poderá vencer o irracional.
*Marta Fantini é
produtora e apresentadora do programa “Le Brésil en Noir & Blanc”, na Rádio
Campus Bordeaux, França.
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