Contingência, Ironia e Cultura
As tentativas metafísicas de conjugar uma luta pela perfeição com um sentido de comunidade exigem que reconheçamos a existência de uma natureza humana comum. Exigem que acreditemos que o mais importante para cada um de nós é aquilo que temos de comum com os outros. Cépticos como Nietzsche insistiram que a metafísica e a teologia são claras tentativas de fazer o altruísmo parecer razoável. No entanto, é típico entre os cépticos, terem as suas próprias teorias da natureza humana, defendendo, também eles, que há algo de comum a todos os seres humanos.
As tentativas metafísicas de conjugar uma luta pela perfeição com um sentido de comunidade exigem que reconheçamos a existência de uma natureza humana comum. Exigem que acreditemos que o mais importante para cada um de nós é aquilo que temos de comum com os outros. Cépticos como Nietzsche insistiram que a metafísica e a teologia são claras tentativas de fazer o altruísmo parecer razoável. No entanto, é típico entre os cépticos, terem as suas próprias teorias da natureza humana, defendendo, também eles, que há algo de comum a todos os seres humanos.
Desde Hegel, pensadores historicistas não deixaram nunca de tentar ultrapassar este conhecido impasse, tendo vindo a negar a existência de uma natureza humana ou de um nível mais profundo do eu. Para estes, a estratégia tem sido a de insistir em que a socialização e, portanto, as circunstâncias históricas representam tudo, que não há nada além da socialização ou anterior a história que defina o humano.
Mantêm-se a tensão entre o privado e o público. Os historicistas, nos quais predomina o desejo de autocriação, de autonomia privada, continuam a ter tendência em ver a socialização da mesma maneira que Nietzsche a entendia: como sendo antitético relativamente a algo de profundo que há dentro de nós. E, os historicistas tendem a ver o desejo de uma comunidade humana mais justa e livre. Continuam a ter inclinação para ver o desejo de perfeição pessoal como estando contaminado de irracionalismo e de esteticismo.
Dessa forma, o mais próximo de conjugar essas duas exigências é ver que o objetivo de uma sociedade justa e livre é permitir que os seus cidadãos sejam, de modo privado, tão irracionalistas e esteticistas quanto entendam ser. A autocriação, ou seja, o vocabulário privado, não é partilhado; entra em contato com um outro vocabulário, o público, que é partilhado servindo como um meio de troca argumentativa.
A Contingência da Linguagem
A ideia que a verdade era feita e não descoberta dominou a Europa do século XVII. A Revolução Francesa mostrou que todo vocabulário das relações sociais e todo o espectro das instituições sociais podiam ser substituídos quase de um dia para o outro. Pela mesma altura, os poetas românticos mostraram o que acontece quando a arte é pensada já não como imitação, mas sim como autocriação do artista. Assim, os poetas reclamariam para a arte o mesmo lugar na cultura que o tradicionalmente ocupado pela religião e pela filosofia. O mesmo lugar que o Iluminismo tinha reclamado para a Ciência.
Para a maior parte dos intelectuais contemporâneos, as questões dos fins, por oposição aos meios – questões acerca do modo de dar sentido à vida de cada um ou à da comunidade de cada um – são questões para a arte ou a política, ou ambos, e não para a religião, filosofia ou a ciência.
Tal evolução levou a uma cisão na filosofia, onde alguns filósofos mantiveram-se fieis ao Iluminismo, vendo o antigo confronto entre ciência e religião, razão e irracionalidade como algo que se mantêm, tendo agora assumido a forma de um confronto entre a razão e todas as forças que pensam a verdade feita e não descoberta. Esses filósofos consideram a ciência como a atividade paradigmática do homem e insistem em que as ciências naturais descobrem a verdade em vez de a fazerem. Outros filósofos, verificando que o mundo tal como é descrito pelos físicos, não proporciona qualquer lição moral e não oferece qualquer conforto espiritual.
Enquanto o primeiro tipo de filósofo contrapõe o fato cientifico sólido ao subjetivo ou a metáfora, o segundo tipo encara a ciência como mais uma atividade humana e não como o plano em que os seres humanos encontram uma realidade sólida. Deste ponto de vista, os grandes cientistas inventam descrições do mundo que são úteis para fins de previsão e de controle daquilo que acontece, tal como os poetas e os pensadores políticos inventam outras descrições do mundo para outros fins. Não há, porém, uma acepção na qual qualquer uma dessas descrições seja uma representação correta do modo como o mundo é em si próprio.
Coube a filosofia procurar compreender e, assim, colocar as ciências no seu lugar e de dar sentido claro a ideia vaga de que os seres humanos fazem a verdade em vez de a encontrarem. O idealismo alemão através de Kant e Hegel, onde o primeiro atribuiu à ciência a esfera da verdade de segunda ordem e o segundo pensava as ciências naturais como uma descrição do espírito ainda não plenamente consciente da sua própria natureza espiritual e, portanto, elevou o tipo de verdade proporcionada pelos poetas e revolucionários a um estatuto de primeira ordem; foi um compromisso insatisfatório, que pretendia ver o mundo da ciência empírica como um mundo feito. Persistiam em ver a mente, o espírito, as profundezas do eu humano como tendo uma natureza intrínseca, a qual poderia ser conhecida pela filosofia.
A verdade superior continuava a ser a questão de descoberta e não de criação. A ideia era repudiar a própria ideia de que tudo tinha uma natureza intrínseca a exprimir ou a representar. Temos de fazer uma distinção entre a tese de que o mundo está diante de nós e a tese de que a verdade está diante de nós. Dizer que o mundo está diante de nós, quer dizer, tal como o senso comum, que a maior parte das coisas no espaço e no tempo são efeitos de causas que não incluem os estados mentais do ser humano. Dizer que a verdade não está diante de nós é dizer que onde não há frases, não há verdade, que as frases são elementos das linguagens humanas e que as linguagens são criações humanas.
Assim, a verdade não pode estar diante de nós porque as frases não podem existir, independentemente da mente humana, porque as frases não podem existir dessa maneira ou estar diante de nós. O mundo está diante de nós, mas as descrições do mundo não. Desta forma, a filosofia da linguagem, explicita as consequências de que as frases podem ser verdadeiras e que os seres humanos fazem verdades ao fazerem linguagem nas quais formulam frases. Acredito, necessário afastar-se das ideias reducionistas(a função de exprimir adequadamente a natureza humana), e da expansionista, (a função de representação adequadamente a estrutura da realidade não humana) e aproximar-se de Wittgenstein, o qual supõe que todos os vocabulários são dispensáveis ou redutíveis a outro vocabulário, ou ainda capazes de serem reunidos a todos os outros vocabulários, formando um grande e unificado super vocabulário.
Neste processo de interação, não se pretende dizer que os vocabulários nunca interfiram uns com os outros. Mas, dizer que a linguagem anterior de uma pessoa era inadequada para lidar com determinado segmento do mundo é apenas dizer que essa pessoa tendo aprendido uma nova linguagem, é agora capaz de lidar mais facilmente com esse segmento. As metáforas antigas estão constantemente a morrer e a tornarem-se literais e, assim, a servir de plataforma e de base para novas metáforas.
Assim, permite-nos pensar a linguagem como algo que ganhou forma como resultado de um grande número de puras contingências. Os usos literais de ruídos e sinais são os usos que podemos abordar com antigas teorias sobre aquilo que as pessoas dirão em várias condições, o seu uso metafórico é aquele que nos leva a desenvolver uma nova teoria. Não devemos pensar que as expressões metafóricas têm significados distintos dos seus significados literais. Ter um significado é ter um lugar num jogo de linguagem. As metáforas, por definição não o têm.
A contingência da Individualidade
É desnecessário a preocupação em identificar a origem da marca cega, pois esta marca é feita das várias contingências a que o individuo passa. Nietzsche sugere que abandone toda a ideia do conhecimento da verdade. A definição nietzscheniana de verdade é entendida como um exército móvel de metáforas, abandonando, assim, toda a representação da realidade através da linguagem ou aquela que fala em encontrar um contexto único para todas as vidas humanas.
Utilizando-se de Nietzsche para refutar a metafísica de realidade intrínseca, Richard Rorty(1989) compreendeu o contexto em que os indivíduos se relacionam, sendo imprescindível para que se tenha uma noção do universo social. O que contasse como existente como possível ou como importante para nós seria aquilo que realmente é possível ou importante. Para o autor, a única maneira de identificar as causas de sermos como somos seria contar uma história sobre as nossas causas numa nova linguagem. Pois, o processo de chegar a conhecer a nós próprios, de nos confrontarmos com a nossa contingência, de identificarmos as nossas causas é idêntico ao processo de inventar uma nova linguagem, isto é, de concebermos novas metáforas. (Rorty: 1992;52).
Contingência de uma comunidade liberal
As instituições e a cultura da sociedade liberal seriam mais bem servidas por um vocabulário de reflexão moral e política que esteja em processo de continuidade, ou seja, em constante reformulação, por um vocabulário que as preservasse. A estratégia é substituir uma substância formada, unificada, presente e contida em si própria, algo capaz de ser visto de forma estável e na globalidade, por um tecido de relações contingentes, uma teia que se estica para trás e para diante através do tempo passado e futuro.
O vocabulário do racionalismo e do Iluminismo, ainda que essencial aos começos da democracia liberal, se tornou um impedimento para a preservação e o progresso das sociedades democráticas. Em tempo, percebo que entre os mecanismos sociais, desenvolve-se um vocabulário que gira em torno das noções de metáfora e de autocriação e não em torno de noções de verdade, racionalidade e obrigação moral, se adequa a tal propósito.
A característica da pessoa civilizada traduz-se na tese de que as sociedades liberais do nosso século produziram cada vez mais pessoas capazes de reconhecer a contingência do vocabulário no qual formulam as suas mais elevadas esperanças e que ainda assim permanecem fiéis a essas consciências. Tal reconhecimento da contingência é a principal virtude dos membros de uma sociedade liberal e que a cultura de uma sociedade assim deveria ter por objetivo curar-nos da nossa profunda necessidade metafísica. Entretanto, os cidadãos da chamada, Utopia Liberal, seriam pessoas com um sentido de contingência da sua linguagem, de deliberação moral, e, por isso, da suas consciências e, portanto, da sua comunidade.
Ironia e Cultura
Um ironista na modernidade é alguém que satisfaz três condições: 1) tem dúvidas radicais e permanentes sobre o vocabulário final que correntemente utiliza, por ter sido impressionada por livros que encontrou; 2) apercebe-se de que a argumentação formulada no seu vocabulário presente não poderá subscrever nem dissolver tais dúvidas; 3) na medida em que filosofa sobre a sua situação, não pensa que o seu vocabulário esteja mais próximo da realidade do que outros, nem que esteja em contato com um poder que não seja ele próprio.
Os ironistas vêem a opção entre vocabulários como sendo feita, nem no interior de um metavocabulário neutro e universal, nem através de uma tentativa de combater à sua maneira as aparências, avançando em direção ao real, mas simplesmente através de um confronto entre o novo e o velho. A percepção do ironista é de que qualquer coisa pode ganhar um aspecto positivo ou negativo ao ser redescrita e a sua renúncia à tentativa de formular critérios de escolha entre vocabulários finais as colocam na posição nunca muito capazes de se levarem a sério. Acredito que isso se define por estarem sempre conscientes de que os termos em que se descrevem a si próprias estão sujeitos a mudança, por estarem sempre conscientes da contingência e da fragilidade dos seus vocabulários finais.
Para os metafísicos, há diante de nós, no mundo, essências reais que é o nosso dever descobrir e que estão dispostas a prestar assistência à sua própria descoberta. Não acreditam que tudo pode ganhar uma luz positiva ou negativa ao ser reescrito, ou se acreditam, deploram tal fato e agarram-se à ideia de que a realidade nos ajudará a resistir a tais tentações. Entretanto, os ironistas não vêem a procura de um vocabulário final como sendo uma maneira de alcançar algo de diferente desse vocabulário. Não consideram que o propósito do pensamento discursivo seja o de conhecer, em qualquer sentido que possa ser explicado por noções tais como realidade, essência real, ponto de vista objetivo e correspondência da linguagem como realidade.
O ironismo resulta da consciência do poder de redescrição. Mas esta redescrição se torna um problema ao pensarmos que a maior parte das pessoas não quer ser reescrita. Quer ser tomada nos seus próprios termos – gostam de serem levadas a sério, precisamente tal como são e tal como falam. O ironista diz-lhes que a linguagem que falam está aberta a golpes seus e dos do seu gênero. O ironista que reescreve, ao ameaçar o vocabulário final de cada um e, assim, a capacidade de cada um para dar sentido a si mesmo nos seus próprios termos e não nos do ironista, sugere que o eu de cada um e o mundo de cada um são fúteis, obsoletos, impotentes. Portanto, a redescrição muitas vezes humilha.
O metafísico pensa que há uma conexão entre redescrição e poder e que a redescrição certa nos pode tornar livres. O ironista não oferece uma segurança semelhante. Tem de dizer que as nossas possibilidades de liberdade dependem de contingências históricas que só ocasionalmente são influenciadas pelas nossas auto-redescrições. Não conhece nenhum poder com a mesma dimensão com que os metafísicos pretendem ter contato. Quando afirma que a sua redescrição é melhor, não é capaz de dar ao termo “melhor” o peso tranquilizante que o metafísico lhe dá quando explica dizendo que significa “estar em melhor correspondência com a realidade”.
Contudo, o ironista é acusado, não de uma inclinação para humilhar, mas de uma incapacidade para dar poder. É que o ironista não é capaz de oferecer o mesmo tipo de esperança social que os metafísicos oferecem. Não é capaz de afirmar que a adoção da sua redescrição de nós próprios ou da nossa situação nos torna mais capazes de conquistar as forças organizadas contra nós.
Mesalas Santos.
Bibliografia Consultada:
RORTY, Richard. Contingência, Ironia e Solidadriedade. Editorial Presença, 1989.
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