Paulo Jonas de Lima Piva
Há um
comentário do filósofo romeno Emil Cioran bastante ilustrativo acerca dos
malefícios que uma certa concepção de filosofia pode provocar. Algumas pessoas
entendem a filosofia como algo semelhante à religião, ou seja, como uma fonte
de verdades absolutas e de modelos corretos de pensar; como uma forma superior
e privilegiada de reflexão acessível apenas a iniciados ou superdotados; ou
ainda como uma via para visões de mundo redentoras. E tudo isso sempre em
contraposição a um menosprezado e vago “senso comum”. Contra os efeitos nocivos
desta concepção de filosofia, sobretudo para o próprio indivíduo que assim a
concebe e a vive, Cioran dá o seguinte depoimento: “A filosofia tem algo muito
perigoso: ela te enche de orgulho, te torna megalomaníaco. Quando eu lia
qualquer um dos grandes filósofos, tinha a impressão de ser um Deus”.
Esse
lamentável fenômeno diagnosticado por Cioran, que poderíamos definir aqui como
pedantismo, ocorre muito nas academias e em outros espaços dominados pela
reflexão, pelas artes e pela crítica, de escritores a atores, de professores,
músicos a jornalistas, passando evidentemente pelos filósofos. E, por falarmos
em filósofos, o pedantismo, infelizmente, também é verificado de modo precoce
entre muitos alunos de graduação dos nossos cursos de filosofia. Quem é do ramo
há algum tempo sabe muito bem o quanto as ciências humanas, em especial a
filosofia, atraem para o seu seio pessoas, digamos, estranhas e problemáticas,
dentre elas os pedantes. E quais seriam as causas geradoras do aluno pedante,
isto é, de jovens estudantes arrogantes, pernósticos, que ostentam
conhecimentos que não possuem, às vezes até de forma agressiva, intolerante e
desrespeitosa?
Certamente
as causas são muitas e complexas. Entretanto, uma delas talvez seja a faixa
etária dos alunos que ingressam no curso, a maioria adolescente. Estereótipos à
parte, quem já passou pela adolescência não se esquece que esta é uma fase
conturbada para muitos em virtude de suas peculiaridades como inseguranças,
questionamentos existenciais, incertezas, necessidade de auto-afirmação e, sobretudo,
imaturidade para o tipo bastante específico de trabalho intelectual exigido
pela filosofia. É preciso convir, por outro lado, que essas particularidades da
adolescência permanecem nas atitudes de alunos com idades bem mais avançadas,
demonstrando que a adolescência é antes de tudo uma questão de faixa etária
psicológica.
Seja como
for, o fato é que inúmeros são os casos de alunos que entram nos cursos
universitários, em especial nos de filosofia, com enormes dificuldades de
escrita e compreensão de texto, resquícios negativos, como sabemos, do nosso
precário ensino médio, tanto público quanto privado. Além disso, com as
facilidades proporcionadas pela Internet, tornou-se hoje uma grande dificuldade
para os professores saberem se os trabalhos apresentados pelos alunos no final
de cada semestre são realmente elaborados por eles. E não são poucos os
estudantes que conseguem unir esses dois tipos de deficiência, isto é, a de
natureza pedagógica com a de natureza ética. Por outro lado, não são exceções
os alunos de boa formação colegial que também apelam para o download quando
pressionados pelas avaliações.
Tais
estudantes, mesmo assim, após terem lido dois ou três livros apenas, às vezes
muito menos do que isso, de terem conhecido muito superficialmente um ou dois
grandes filósofos, como no relato de Cioran, eles se sentem capazes, logo nos
primeiros meses do ano letivo, de já arrotarem sentenças categóricas, de
decretarem conclusões, de darem respostas definitivas a problemas filosóficos
tradicionalmente dificílimos, de imporem suas opiniões como absolutas e, o que
é pior, acham-se cultos e preparados o suficiente para tentar destruir
reputações de professores e de pessoas que já estudavam filosofia de modo sério
e com afinco quando eles ainda nem existiam.
Enfim,
esses estudantes entorpecidos pela sensação de que são deuses como os filósofos
que idolatram, passam a acreditar que sabem tudo, em particular julgar quem
sabe alguma coisa e quem não sabe nada. Em outras palavras, desmerecem opiniões
divergentes, desqualificam interlocutores e segregam colegas, quase sempre
movidos pela precipitação, pela pretensão, pela leviandade, pelo preconceito,
bem como pela mentira e pela ignorância. Esses alunos, vítimas dos personagens
que criam de si mesmos para enganar aos outros e a si próprios, acabam fazendo
do ambiente de estudo um lugar de disputas vãs em torno de bagatelas,
implicâncias e rabugices, além de passarela para egos doentes e carentes que
precisam se impor para serem notados, e assim superar suas frustrações e até
invejas.
De onde se
segue que os malefícios do pedantismo têm uma dupla conseqüência, em especial
nos ambientes filosóficos. Do ponto de vista social, geram um clima de
antipatia, hostilidade e de disputa nada saudável entre os colegas de estudo, o
que acaba por minar a possibilidade de um trabalho de pesquisa integrado,
solidário e bastante profícuo. Já do ponto de vista individual, o estudante de
filosofia pedante, iludido com a falsa imagem que alimenta de si mesmo e
dominado pela necessidade de se auto-afirmar, cria resistências ao diálogo, à
comunhão de idéias e, por conseguinte, compromete o seu próprio aprimoramento
intelectual e filosófico na medida em que se fecha, se chafurda e se intoxica
com os dogmas da sua postura estagnante.
Associado
a essa doença infantil que atinge alguns dos nossos graduandos em filosofia
está o culto aos títulos acadêmicos. Ser mestre ou doutor, orientando do
professor beltrano ou sicrano, estes passam a ser critérios para eles
hierarquizarem e selecionarem as pessoas com as quais deverão conviver na
academia. Trata-se, no fundo, de um fascínio pelo ouro de tolo. Mas essa
estirpe de aluno, cega pelo preconceito e pela estreiteza da sua doença
infantil, para se sentir ainda mais superior faz desses títulos e das bolsas de
financiamento à pesquisa a eles acopladas, suas razões existenciais. Para obter
tais títulos e assim ascenderem numa falsa hierarquia, estabelecem as mais
sórdidas estratégias de relacionamento, sendo a principal delas bajular pessoas
célebres do meio filosófico até conseguirem finalmente ser adotadas por elas.
Tal prática rasteira, que torna o ambiente acadêmico injusto e insuportável, é
conhecida como “carreirismo”.
Em suma, o
pedantismo filosófico e as suas conseqüências deveriam ser tratados como um
problema ético importante, e isso logo no seu nascedouro, isto é, na graduação
em filosofia. Não se trata aqui de propor uma reflexão tendo por base o nada
modesto “só sei que nada sei” socrático tampouco o radical e de certo modo
anti-socrático “nem sei se nada sei” de Metrodoro de Quio. Paradoxalmente, o
problema merece uma abordagem menos metafísica e mais prática por parte dos
professores em sala de aula. Isso significa pelos menos o seguinte: 1)
desmistificar a filosofia e a razão derrubando-as do altar no qual foram
colocadas pela história da filosofia tradicional, aquela de ranço escolástico e
religioso que faz de Sócrates, Platão e Aristóteles os “verdadeiros filósofos”
e dos sofistas, cirenaicos, cínicos e outros, “filósofos menores” ou até antifilósofos;
2) humanizar as doutrinas e os filósofos, ou seja, mostrá-los não como
revelações sobrenaturais e super-homens, mas como realidades humanas demasiado
humanas; 3) desmantelar as hierarquias promovidas pelos títulos acadêmicos,
pois, como sabemos, mestres, doutores e pós-doutores são antes de tudo
atestados de especializações aprofundadas e não certificados de conhecedores ou
donos da verdade, uma vez que em filosofia somos todos eternos estudantes; 4)
promover em vez da disputa aniquiladora, da formação de panelinhas em sala de
aula e da concorrência darwinista entre os alunos, um trabalho mais de
conjunto, no espírito da construção sincera e desinteressada da reflexão em
oposição à postura de vencer debates a todo custo em benefício do ego e à custa
desse esforço coletivo . Em uma palavra, é preciso tornar o ambiente das turmas
das graduações em filosofia mais agradável e leve, isto é, curadas e imunes ao
pedantismo, à megalomania e aos seus desdobramentos. Quem sabe assim a
filosofia mostra-se menos carrancuda e esnobe e mais simpática e acolhedora.
(Texto publicado em 2007, na edição de número 14 da revista Filosofia, Ciência & Vida,
páginas 74 e 75).
interessantíssimo!
ResponderExcluirSó sei que concordo!
ResponderExcluirÓitma a idéia de oficializar a crítica( de total fundamento sociopata ), na qual muitas pessoas projetam o sucesso exclusivamente nas conquistas de títulos acadêmicos e de pertencerem a um grupo de grande prestígio. Isto tem que acabar!
ResponderExcluirEntretanto, devemos agir com bastante cautela ao aplicar a filosofia na interação do indivíduo com a coletividade, pois puseram esta interação em prática nos diversos cursos da área das denominadas ciências humanas, e serviu somente para desvalorizar o pensamento individual, combatendo o pensamento autônomo. A crítica à busca desmedida de títulos é pertinente, mas as sugestões aqui apresentadas não eliminam o verdadeiro problema, que é de falta de ética (espiritualidade), atacada a todo instante pelo regime político-econômico que rege a nossa sociedade. Temos que desmebrar o materialismo darwinista e, a partir deste desmembramento, levantar diversos debates para a adoção de uma nova, humanizadora e próspera ideologia