domingo, 3 de abril de 2011

Homo festivus à mesa
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Sébastien Lapague
Se por um lado a gastronomia francesa foi finalmente tombada pelo patrimônio histórico como bem cultural imaterial da humanidade, por outro nunca se comeu tão mal. Não se perde tempo nem dinheiro com refeições: tudo é puro agrotóxico, aditivos e plástico
  
A gastronomia francesa foi finalmente tombada pelo patrimônio histórico como bem cultural imaterial da humanidade. Essa honra, há muito esperada, foi publicada em 16 de novembro de 2010, em Nairobi, por ocasião do 5o Encontro Intergovernamental da ONU para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Em Paris, os ministérios da Cultura e da Agricultura ficaram exultantes com o tombamento, assegurando um trabalho conjunto com o fim de “valorizar os produtos alimentares e as técnicas culinárias, estimular o turismo gastronômico em certas regiões da França e desenvolver a promoção do patrimônio alimentar francês em nível internacional”.       
Apesar de a vida agitada deixar pouco tempo para o almoço e do advento dos fast-foods; apesar de os executivos se doparem com seus complementos alimentares e se orgulharem por não perder tempo à mesa nas refeições; apesar de 30% das crianças se queixarem da comida servida nas cantinas escolares; apesar dos nossos alimentos estarem envenenados por suspeita de agrotóxicos, aditivos e plásticos; e apesar de 3 milhões de pessoas serem vítimas de desnutrição na França, vivendo sob auxílio alimentar público, o enobrecimento gastronômico dos franceses tem algo de grotesco, até mesmo de indecente. Estamos esquecendo o que existe por trás dessa cortina de fumaça que sai das panelas da identidade nacional.
Em Nairobi, a culinária francesa entrou para a nobre lista de patrimônio cultural imaterial da humanidade juntamente com a arte do pão de especiarias na Croácia do Norte, a procissão dançante de Echternach em Luxemburgo, as técnicas tradicionais de tecelagem dos tapetes de Fars no Irã, a dança das tesouras no Peru, as festas de Gióng nos templos de Phù Dông e de Soc no Vietnã, além de alguns outros belos e frágeis costumes ancestrais ameaçados pela mecanização mundial. Para culminar a palhaçada completa, os líderes da missão francesa, no início desta candidatura, teriam buscado essa inclusão na curta lista como “patrimônio imaterial que necessita urgentemente de salvaguarda”.
Apesar dos almoços gastronômicos oferecidos às mais altas classes nos palácios parisienses, tudo regado com o que há de mais caro e melhor; apesar dos chefs estrelados vistos na TV; apesar de todo o aparato com ostras, bacalhaus, lagostas, trufas, foie gras, aves, caviar, queijos e finos vinhos, os pratos franceses são um patrimônio em perigo. Os franceses, infelizmente, cada vez têm menos tempo e dinheiro para gastar em refeições completas: entrada, prato principal, queijos e sobremesa. É interessante observar que o governo, cujos membros trabalharam para a coroação das refeições gourmets francesas, também aboliu a lei que tornava obrigatório para os empregados da indústria e comércio um descanso semanal de 24 horas, fixado no domingo. Essa lei, devemos lembrar, não data dos dias festivos da Libération, mas da Belle Epoque. Ou seja, o esfacelamento do tecido social que está acontecendo hoje na França é feroz. Dentro deste contexto, é impossível se deixar levar pelos discursos gentis sobre as virtudes conviviais da refeição gastronômica dos franceses e sua capacidade em reforçar as ligações sociais.
Estamos comendo mal nas escolas, nas empresas e nos hospitais. Uma única Semaine du Goût (Semana da Gastronomia) não muda em nada as outras 52 nem revelam as vacas magras do sistema, mas apenas a carne moída recomposta com soja. As multinacionais servem aos seus funcionários pratos gordurosos com fosfatos e ricos em gorduras saturadas. Os horários e os escalonamentos impedem que muitos comam juntos. E nas refeições aos domingos em família, entre vizinhos, amigos ou parentes, há sempre o risco de alguém não comparecer, alguém que poderá ter a infelicidade de ficar retido em uma área de interesse turístico ou dentro de um perímetro com muita oferta de consumo. Colocada sobre o pedestal, celebrada e discutida, a refeição à la francesa pode agora se transformar em recordação, como bem retratada no filme Festa de Babette, mas com risco de haver fome no final. Ainda se falará muito a respeito dela, mas cada vez menos nos sentaremos à mesa. 

Ascensão da indústria alimentícia
Historiador das pompas e fúrias da “grande bouffe do século XIX”, Jean-Paul Aron observou, há 25 anos, que o mito do triunfo da glutonaria floresceu na França no momento em que o país disse boa noite à gastronomia, tendo por base alguns pontos: “A súbita ascensão da indústria alimentícia; a criação intensiva de frangos; o sucesso dos primeiros hambúrgueres vendidos em drogarias 20 anos antes do boom da rede McDonald’s; o aparecimento gradual dos grandes supermercados; pacotes em celofane sacrificando a sensualidade em nome da higiene; a introdução, depois o triunfo, nos anos 1970, dos produtos congelados sobre a cozinha mais e mais banalizada onde se come assistindo a TV; a substituição do rosto querido da mãe ou esposa pelo desejo de fuga, da coqueterie e do tempo livre que traduzem a inversão dos valores tradicionais”. Citando Guy Debord: tudo que foi comido diretamente afastou-se de nós dentro de uma representação.
Por isso há todas essas crônicas gastronômicas nos jornais, todos esses programas culinários na TV e toda essa avalanche de livros de cozinha nas livrarias. E por isso, também, o tombamento da gastronomia francesa como patrimônio cultural. Com relação a esse assunto não é o adjetivo “gastronômico” que é cômico. Ele não distingue por si só a culinária profissional da culinária doméstica: existe uma gastronomia popular cujos cozidos e sopas são ornamentos; e uma culinária profissional que nem sempre merece o termo gastronomia. Entenda-se que é um estilo de vida que os especialistas da Missão Francesa do Patrimônio e Culturas Alimentares defenderam. Existem também as “gramáticas da criação”, observou certa vez George Steiner. Existem igualmente as “gramáticas da gourmandise” que nos permitem saber onde, quando, como e por que sentamos à mesa. Mas a sistematização do assunto como se fosse uma simples mercadoria distorceu o significado da refeição, seus horários e a natureza dos pratos propostos, deixando queimar tudo até apagar a “memória do paladar”.
Colocado dessa maneira, o problema é menos desesperador do que parece: ele nos lembra que a refeição gastronômica dos franceses faz parte da questão ecológica e social. Ou então que a refeição gastronômica francesa é boa para ser exibida num museu como arte e tradição popular. E está condenada a ser posta apenas nas mesas dos mais afortunados do mundo, ressaltada por legumes de chefs que respondem com ironia quando lhe falam de produção agroecológica, consumida por comensais que nada conhecem de vinhos, que só bebem etiquetas e falam de meio ambiente com emoção na voz, mas zombam das catástrofes alimentares. 
FONTE: http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=862

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