Se por um lado a gastronomia francesa foi finalmente tombada pelo
patrimônio histórico como bem cultural imaterial da humanidade, por
outro nunca se comeu tão mal. Não se perde tempo nem dinheiro com
refeições: tudo é puro agrotóxico, aditivos e plástico
A gastronomia francesa foi finalmente tombada pelo patrimônio histórico como bem cultural imaterial da humanidade. Essa honra, há muito esperada, foi publicada em 16 de novembro de 2010, em Nairobi, por ocasião do 5o Encontro Intergovernamental da ONU para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Em Paris, os ministérios da Cultura e da Agricultura ficaram exultantes com o tombamento, assegurando um trabalho conjunto com o fim de “valorizar os produtos alimentares e as técnicas culinárias, estimular o turismo gastronômico em certas regiões da França e desenvolver a promoção do patrimônio alimentar francês em nível internacional”.
Apesar de a vida agitada deixar
pouco tempo para o almoço e do advento dos fast-foods; apesar de os executivos
se doparem com seus complementos alimentares e se orgulharem por não perder
tempo à mesa nas refeições; apesar de 30% das crianças se queixarem da comida
servida nas cantinas escolares; apesar dos nossos alimentos estarem
envenenados por suspeita de agrotóxicos, aditivos e plásticos; e apesar de 3
milhões de pessoas serem vítimas de desnutrição na França, vivendo sob auxílio alimentar
público, o enobrecimento gastronômico dos franceses tem algo de grotesco, até
mesmo de indecente. Estamos esquecendo o que existe por trás dessa cortina de
fumaça que sai das panelas da identidade nacional.
Em Nairobi, a culinária francesa
entrou para a nobre lista de patrimônio cultural imaterial da humanidade
juntamente com a arte do pão de especiarias na Croácia do Norte, a procissão
dançante de Echternach em Luxemburgo, as técnicas tradicionais de tecelagem dos
tapetes de Fars no Irã, a dança das tesouras no Peru, as festas de Gióng nos
templos de Phù Dông e de Soc no Vietnã, além de alguns outros belos e frágeis
costumes ancestrais ameaçados pela mecanização mundial. Para culminar a
palhaçada completa, os líderes da missão francesa, no início desta candidatura,
teriam buscado essa inclusão na curta lista como “patrimônio imaterial que
necessita urgentemente de salvaguarda”.
Apesar dos almoços gastronômicos
oferecidos às mais altas classes nos palácios parisienses, tudo regado com o
que há de mais caro e melhor; apesar dos chefs estrelados vistos na
TV; apesar de todo o aparato com ostras, bacalhaus, lagostas, trufas, foie
gras, aves, caviar, queijos e finos vinhos, os pratos franceses são um
patrimônio em perigo. Os franceses, infelizmente, cada vez têm menos tempo e
dinheiro para gastar em refeições completas: entrada, prato principal, queijos
e sobremesa. É interessante observar que o governo, cujos membros trabalharam
para a coroação das refeições gourmets francesas, também aboliu a lei que tornava
obrigatório para os empregados da indústria e comércio um descanso semanal de
24 horas, fixado no domingo. Essa lei, devemos lembrar, não data dos dias
festivos da Libération, mas da Belle Epoque. Ou seja, o esfacelamento do tecido
social que está acontecendo hoje na França é feroz. Dentro deste contexto, é
impossível se deixar levar pelos discursos gentis sobre as virtudes conviviais
da refeição gastronômica dos franceses e sua capacidade em reforçar as ligações
sociais.
Estamos comendo mal nas escolas,
nas empresas e nos hospitais. Uma única Semaine du Goût (Semana da Gastronomia)
não muda em nada as outras 52 nem revelam as vacas magras do sistema, mas
apenas a carne moída recomposta com soja. As multinacionais servem aos seus
funcionários pratos gordurosos com fosfatos e ricos em gorduras saturadas. Os
horários e os escalonamentos impedem que muitos comam juntos. E nas refeições
aos domingos em família, entre vizinhos, amigos ou parentes, há sempre o risco
de alguém não comparecer, alguém que poderá ter a infelicidade de ficar retido
em uma área de interesse turístico ou dentro de um perímetro com muita oferta
de consumo. Colocada sobre o pedestal, celebrada e discutida, a refeição à la
francesa pode agora se transformar em recordação, como bem retratada no filme
Festa de Babette, mas com risco de haver fome no final. Ainda se falará muito
a respeito dela, mas cada vez menos nos sentaremos à mesa.
Ascensão da indústria alimentícia
Historiador das pompas e fúrias
da “grande bouffe do século XIX”, Jean-Paul Aron observou, há 25 anos, que o
mito do triunfo da glutonaria floresceu na França no momento em que o país
disse boa noite à gastronomia, tendo por base alguns pontos: “A súbita ascensão
da indústria alimentícia; a criação intensiva de frangos; o sucesso dos
primeiros hambúrgueres vendidos em drogarias 20 anos antes do boom da rede
McDonald’s; o aparecimento gradual dos grandes supermercados; pacotes em
celofane sacrificando a sensualidade em nome da higiene; a introdução, depois o
triunfo, nos anos 1970, dos produtos congelados sobre a cozinha mais e mais
banalizada onde se come assistindo a TV; a substituição do rosto querido da mãe
ou esposa pelo desejo de fuga, da coqueterie e do tempo livre que traduzem a
inversão dos valores tradicionais”. Citando Guy Debord: tudo que foi comido
diretamente afastou-se de nós dentro de uma representação.
Por isso há todas essas crônicas
gastronômicas nos jornais, todos esses programas culinários na TV e toda essa
avalanche de livros de cozinha nas livrarias. E por isso, também, o tombamento
da gastronomia francesa como patrimônio cultural. Com relação a esse assunto
não é o adjetivo “gastronômico” que é cômico. Ele não distingue por si só a
culinária profissional da culinária doméstica: existe uma gastronomia popular
cujos cozidos e sopas são ornamentos; e uma culinária profissional que nem
sempre merece o termo gastronomia. Entenda-se que é um estilo de vida que os
especialistas da Missão Francesa do Patrimônio e Culturas Alimentares
defenderam. Existem também as “gramáticas da criação”, observou certa vez
George Steiner. Existem igualmente as “gramáticas da gourmandise” que nos
permitem saber onde, quando, como e por que sentamos à mesa. Mas a
sistematização do assunto como se fosse uma simples mercadoria distorceu o
significado da refeição, seus horários e a natureza dos pratos propostos,
deixando queimar tudo até apagar a “memória do paladar”.
Colocado dessa maneira, o
problema é menos desesperador do que parece: ele nos lembra que a refeição
gastronômica dos franceses faz parte da questão ecológica e social. Ou então
que a refeição gastronômica francesa é boa para ser exibida num museu como arte
e tradição popular. E está condenada a ser posta apenas nas mesas dos mais
afortunados do mundo, ressaltada por legumes de chefs que respondem com ironia
quando lhe falam de produção agroecológica, consumida por comensais que nada
conhecem de vinhos, que só bebem etiquetas e falam de meio ambiente com emoção
na voz, mas zombam das catástrofes alimentares.
FONTE: http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=862
FONTE: http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=862
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