Washington
Araújo
Não vem de hoje o debate no Brasil sobre liberdade
de expressão e, mais especificamente, liberdade de expressão nos meios
impressos. É oportuno recordar que os jornais dos primeiros tempos da burguesia
em ascensão assemelhavam-se tão-somente a meros produtos artesanais de
transmissão das informações mercantis dos viajantes e comerciantes, e somente
no século 18 alcançaram o estatuto de imprensa de opinião em função da
exigência do estabelecimento de um Estado constitucional burguês.
A propósito, Jürgen Habermas (1929- ), em seu Mudança
Estrutural na Esfera Pública (Editora Tempo Brasileiro, l984) afirmava que
a imprensa não podia deixar de se comprometer politicamente com o combate pela
liberdade da opinião pública, pela publicidade e pela crítica enquanto
princípios, porque a esfera pública não tinha ainda adquirido um estatuto legal
e estável. O que a história mostra é uma longa caminhada dos jornais em busca
de seu lugar na esfera pública.
Muitos foram os filósofos e pensadores que se
debruçaram sobre a questão. Por exemplo, para Immanuel Kant (1724-1804) a
liberdade de imprensa era o verdadeiro paladino da liberdade, batendo-se por
uma imprensa livre que não existia; e mesmo na França, onde estava instituída
essa liberdade, a imprensa inscrevia-se na ordem pedagógica da cidadania, no
sentido de levar ao povo as luzes da verdade, como penhor e formação da uma
vontade para sempre inibitória do retorno dos velhos fantasmas absolutistas.
Os animadores de notícias
E hoje, o que vemos? Muitas dessas "luzes da
verdade" brilhando através de lâmpadas fabricadas pelo interesse
corporativo, quando não meramente político-partidário. Não se trata mais de
impedir o retorno dos "velhos fantasmas absolutistas" porque muitos
desses, na verdade, nunca saíram de cena; ou pior, estiveram sempre muito próximos
do fogo ateado pelas paixões políticas, pelas ideologias, pelos muitos
"ismos": liberalismo, conservadorismo, socialismo.
É mais que evidente que a instituição da liberdade
de expressão, como a dimensão cultural da natureza bipolar da imprensa, exigia
o desenvolvimento da dimensão econômica, a liberdade de empresa, vista nos
primórdios da atividade jornalística instituída como condição fundamental para
o exercício do debate público. E não se pode descartar que a sobrevivência
material e financeira aparecia como característica primeira da liberdade de
imprensa para que pudesse manifestar, sem qualquer censura, coação ou
violência, as opiniões e informações contrárias ao Estado ou ao poder político.
Deixemos as digressões ao largo, ao menos por
alguns instantes, e vamos tentar entender isso que nossos principais jornais e
revistas (ao menos em número de circulação diária ou semanal) entendem como
tal. É, no fundo, um falso debate. Isto porque há Liberdade de Expressão e
liberdade de expressão. Enquanto a primeira se grafa em versalete ou em caixa
alta, a segunda se contenta em povoar endereços virtuais de quinta categoria,
confraterniza animadamente com blogues nem sempre limpinhos e aparece sempre
replicada por uma tal Teia da Cidadania que reúne os deserdados pelo capital,
pelas ideias, pela fama e renome.
A primeira é aquela defendida com unhas, dentes,
tinta, papel, rádio, TV, internet e simpósios pelo patronato da grande
imprensa, os que são proprietários de conglomerados midiáticos, os também
chamados – nem sempre respeitosamente – mercadores da informação. São poucos,
não perfazem duas mãos os nomes dos que detêm quase como os antigos sesmeiros
do Brasil colonial o poder de tornar comerciável o que é e o que não é notícia,
o que é e o que não é bom para o Brasil, a visão de mundo que desejamos e
aquele mundo tóxico, sempre indesejável, que desperdiça seus recursos materiais
e humanos para melhorar a paisagem, quase sempre parada, de muita pobreza e
miséria.
A segunda é a liberdade prima-pobre, não é tema de
editoriais, nem de primeiras páginas de jornais de grande circulação; a esta
são sonegadas observações lisonjeiras de jornalistas que em bancadas de
telejornais de grande audiência se comportam como animadores de notícias. É a
liberdade de imprensa invocada, pretendida, suplicada, requerida nos tribunais
pelos sem-jornais, sem-TVs, sem-portais na internet, sem-rádios, sem-apoio
financeiro de corporações empresariais.
Direito restrito
É, repito, um falso debate. Os que empunham as
bandeiras de liberdade de imprensa o fazem mais para preservar
"conquistas" empresariais que para defender um conceito que se
contraponha ao estado de exceção que começa promovendo a censura aos meios
noticiosos e ninguém sabe direito como termina. É falso porque não se ampara em
intenções honestas, em defesa de princípios lídimos. Não é debate porque o lado
da caixa alta – Liberdade de Expressão – detém todos os meios adequados à
verbalização e imediata repercussão de seu ideário, pressupostos e conclusões.
Ao outro lado, o da caixa baixa – liberdade de expressão – resta apenas o jus
esperniandi, o velho direito romano e agora tão abrasileirado direito de
espernear.
E mesmo essa manifestação de contrariedade é quase
sempre sufocada pela desqualificação dos que se atrevem a espernear: são
ex-profissionais ressentidos que um dia ocuparam cargos relevantes no negócio
da imprensa, jornalistas de quinta, comediantes travestidos de jornalistas,
escrevinhadores saudosistas do stalinismo e por aí vai.
É falso este debate porque os debatedores convidados
– e os únicos com direito a voz e sua consequente repercussão – articulam
sempre o mesmo discurso e o fazem com maestria, de forma que quando um
editorial termina em "a" o outro começa em "e" de maneira a
logo termos a sequência correta do conjunto de vogais convocadas.
É curioso – bastante curioso! – que os que pugnam
por mais liberdade de expressão são justamente os atores sociais que a
esbanjam, que detêm o monopólio de seu uso de forma irrestrita e quase sempre
discricionária. Não há dúvida que muitos anônimos anseiam por ampla liberdade
de expressão, mas estes terão que se conformar com o estado de coisas – poderão
se expressar da forma que quiserem, mas não poderão ser ouvidos na amplitude
que se possa considerar abrangente e minimamente justa.
De que adianta ter o direito de livre expressão se
não existem meios para potencializá-lo, para alcançar o público-alvo
pretendido? Aqueles que já passaram pelo calvário que é requerer a reposição de
justiça quando seu nome é jogado ao lodaçal das más reputações, quando sua
honra é enxovalhada sem que se lhe ofereça o direito basilar de autodefesa,
conseguem perceber quão cruel pode ser o usufruto da liberdade de expressão
tão-somente por aqueles que dispõem dos meios de comunicação massivos. E até que
parcela majoritária da sociedade brasileira possa ser ouvida, de maneira
equânime, ciente de que todos têm o mesmo direito perante a justiça, já que o
conceito de justo – bem o sabemos – é anterior ao conceito de bem, não
poderemos dizer que no Brasil a liberdade de expressão é um direito de todos e
de todas.
Privativo dos meios de comunicação
Não menos nociva é a confusão que tem sido semeada
de forma bastante articulada: liberdade de expressão e liberdade de imprensa
significam o mesmo. Ora, há que se pensar a liberdade de imprensa não mais
apenas como um direito individual privado, mas como um direito social coletivo,
fundamentado numa concepção igualitária de justiça. Fazendo isso, passamos a
colocar estas ideias em seus eixos. Urge que pensemos a imprensa novamente como
um espaço de reflexão crítica, consciente e esclarecida, capaz de garantir o
direito de participação de cada sujeito no processo político e na prática
comunicativa. Em algum dia voltaremos a tratar dessa "confusão
premeditada".
A farsa que se monta chega a ser perversa em sua
própria natureza: a bandeira da vítima passa ser empunhada com vigor sempre
redobrado pelo algoz, de forma que gradativamente o conceito de liberdade de
expressão passa a ser privativo dos meios de comunicação e de seus
representantes per excellence, i.e., os proprietários dos canais, dos
portais, dos parques gráficos, das empresas jornalísticas em geral. E ai
daquele que se aventurar a requerer como seu este direito. Entrará na história
ou como vândalo das ideias ou como inocente útil manipulado por organizações da
sociedade civil como mera massa de manobra – gente incapaz de pensar por si
mesma e, mais que isso, incapaz de exercer seu direito à livre expressão.
FONTE: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=635JDB002
FONTE: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=635JDB002
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